Mensagens e poesias
Roseana Murray é um dos grandes nomes da literatura brasileira. Ao longo deste post, veremos algumas belas poesias que surgiram da inspiração dessa escritora, publicados em livros como "A casa de todos os ninhos", "Atrás de cada coisa", "Brinquedos e brincadeiras", dentre outros.
[Roseana Murray com aquele objeto que mais sabe criar: o livro e a palavra. Imagem: Roseana Murray | Reprodução] |
DEPOIS, VOCÊ PODE LER TAMBÉM
A CASA DE TODOS OS NINHOS
Existe uma casa encantada
que abriga todos os ninhos,
é feita de sol e vento,
calor, areia e tempo.
Suas árvores se vestem
de espinhos, de ervas
com raízes gigantes
(maiores que elefantes),
e flores e cactos
que enfrentam
as tempestades, ondas
e redemoinhos.
A casa de todos os ninhos
agarra as areias das praias,
abraça as dunas e lagoas,
sobe e serpenteia
pelas terras firmes,
coberta de sal, brilha
no sol quente
para proteger
o litoral.
BERÇO DE ESPINHOS
A restinga respinga
beleza
para todos os lados,
até para o canto
dos pássaros.
Ela protege os ninhos
dos sabiás e socós,
dos sacis e colibris,
dos gaviões e urubus,
das garças e periquitos,
com seus galhos,
seus espinhos,
seus esconderijos,
pois os ninhos são tesouros
mais preciosos que besouros!
OS PERFUMES DA CASA
Dia e noite, na restinga,
os perfumes de todas
as vidas, flores e frutas
e bichos,
misturados
aos cheiros da terra,
das lagoas, dos rios,
e da maresia,
se juntam, forram os ninhos,
ocupam cada recanto,
e voam
junto com os passarinhos.
ILHAS PERDIDAS
Como recolher
com os olhos
a linha do horizonte
para remendar sonhos
estilhaçados?
Existem ilhas perdidas
onde o mal não entra.
Há que encontrá-las,
é urgente,
para que se possa desfiar
alguns versos,
o novelo do tempo.
FIRMAMENTO
Para acolher o firmamento
e seu silêncio,
perguntas sem resposta,
há que mergulhar
no vazio de dentro,
em seu claro-escuro,
seu chão sem fundo,
o nascimento de mundos.
Para construir com as teias
do indecifrável.
CASA NO AR
Na praia ou na montanha,
na ilha ou no continente,
na cidade ou no campo
há um balaio de pequenas felicidade
prontas para o voo.
Basta afiar as asas
e o olhar.
Basta saber construir
uma casa no ar.
AOS PEDAÇOS
O menino vai comendo
a vida aos pedaços:
feijão com arroz,
o mar e seus segredos,
manteiga com pão,
o céu e suas estrelas,
tudo o que existe
no Universo
para a gente amar.
UMA CASA
Uma casa cabe
na mala?
Com seus quartos,
portas, janelas,
o vento que faz dançar
as cortinas,
com os silêncios
quebrados pelas vozes
amadas?
EM CAMADAS
Arrumo a mala
em camadas,
como se arrumasse a terra
para receber girassóis.
Primeiro os desejos,
depois o perfume
de quem dirá “volte logo”,
então as roupas e agulha
grossa e cordão
para remendar os sapatos.
A TEIA DA TERRA
Com fios finos e fortes
as aranhas tecem
suas teias.
Às vezes,
uma gota d’água
se pendura,
ou um raio de sol.
E a natureza tece
a maior teia do mundo,
com fios invisíveis
liga e amarra
florestas, mangues,
rios e oceano,
cada bicho grande ou pequeno,
qualquer um
que se imaginar:
serpente
ou alga marinha
ou gente,
em todo lugar.
ALEGRIA
Todos os cheiros maravilhosos,
desde sempre até agora,
ficam bem guardados
no cofre que carregamos
debaixo da pele,
no coração.
Quando a alegria
vira voo,
chuva e fogueira,
o cofre se abre, e todos
os cheiros de juntam
no perfume
mais delicado,
enlaçando o ar.
Perfumes
CAMBALHOTA
Tem gente que tem
cada mania estranha,
não sei qual será a tua,
mas muito bom é dar
cambalhota
antes
de pular da cama,
pra dar sorte.
E antes de dormir,
jogar um beijo pra lua.
MIOLO DE PÃO
Cada um é como é,
cada um com a sua mania:
O menino retira
o miolo do pão
e amassa, desamassa,
faz bolinha,
pedaço por pedaço,
até que tudo
mastigado e devorado,
sai correndo pelo mundo.
A BORBOLETA
Em sua casa casulo
bem enrolada nos fios,
a lagarta dorme a noite
dos que fabricam
asas no escuro.
O seu sono é de veludo
e segredo
e pouco a pouco,
enquanto o menino
e a menina piscam
os olhos,
não se sabe
como aconteceu:
a lagarta virou
borboleta azul,
vira virou
uma borboleta aquarela.
NOS OLHOS
Tanta coisa para guardar nos olhos,
Bicho-gente-paisagem,
tanto mar e montanha
e jardim, tanto amor,
tantas cores e o mundo
que passa como da janela
de um trem,
tanta coisa para guardar
nos olhos,
que às vezes transbordam
e com suas lágrimas
de riso, alegria ou dor,
se transformam em rio.
NUNCA SE SABE
Nunca se sabe
o que o dia oferecerá,
ou a noite,
ou mesmo a madrugada,
e convém estar preparado
para qualquer vento,
sol ou tempestade
com um poema no bolso,
como se fosse um lenço
para enxugar o suor,
ou mesmo uma lágrima,
ou um pedaço de bolo
para comer devagarinho,
(junto com uma xícara de chá de orvalho),
migalha por migalha.
Um poema é como
um passe de magica,
uma pirueta,
um bilhete para o trem
que sai da estação
pontualmente,
em hora nenhuma
numa data inexistente.
NUMA ESTAÇÃO DE TREM
Imagino uma estação
de trem toda dourada,
para dias em que,
por algum motivo,
estamos presos dentro
de casa
Os trens partiriam
para Vênus,
a estrela mais brilhante
da madrugada,
para Pasárgada,
onde o poeta é amigo do rei,
para Atlântida, com suas calçadas cravejadas
com pedrinhas coloridas,
para o futuro,
para o passado.
Desembarcaríamos
com uma pequena maleta
cheia de coisas inúteis,
selos antigos, poemas,
figurinhas, desenhos,
flores secas, perfumes,
e o trem nos esperaria
pacientemente até meia-noite em ponto,
quando as carruagens
viram abóboras
e os trens da estação dourada
se desmancham no ar.
O XALE AZUL DA SEREIA
com asas de seda,
a borboleta dourada
escreve no vento.
sereias costuram
com fios de horizonte
seus xales azuis.
beijos amarelos
girassóis cobrem o campo
canto para os olhos.
FLORES DE DESEJOS
No pulso amarraria
flores para marcar
o tempo da beleza,
o tempo de um suspiro,
o tempo do amor.
De flor em flor
chegamos ao país
da delicadeza,
onde as palvras
são coloridas
e soam como sinos
suaves,
como musgo e veludo.
Então podemos construir
o mais secreto jardim.
Como se fossem
tapetes voadores,
flores roxas
me carregam
em sua seda,
levam minha sede
de beleza
até a nascente
das cores.
Então mergulho,
de olhos abertos.
NO CAIS DO CÉU
No fim da tarde
a lua dança
no cais do céu,
e oscila
como se a luz
fosse de água,
como se fosse
de vidro,
e ancora no fundo
dos meus olhos,
para que
possam sonhar.
ROCA
Na roca de fiar poesia
os fios são de ar,
do som que o orvalho
faz ao tocar a pétala
de uma flor azul.
Na roca de fiar poesia,
os fios são feitod
de segredos, dos ventos
que sopram do lado
oculto da lua,
são fios de tecer
horizontes,
de tecer amor.
SAPATEEEEIRO! SOLADO, MEIA-SOLA,
SALTOS E COSTURAS!
Antigamente, os sapatos
eram preciosos
e se usavam até acabar.
Com remendos e novas
costuras, outra sola,
outro salto,
nenhum sapato
ia para o lixo
sem antes quase
desaparecer
tão completamente
que nem se diria
um sapato.
E, então, havia
os sapateiros ambulantes
com suas ferramentas.
Paravam à porta
das casas,
e, um por um,
os sapatos velhos
se apresentavam
feito parentes
que tinham voltado
de uma longa viagem.
GATOS
Um gato azul
parece feito
de nuvem de veludo;
onde pisa
deixa pegadas
de seda,
pegadas de ar.
Será que pensa
luar?
Um pé em casa,
um pé na rua,
um olho no dono
outro na lua.
De cima do telhado,
com os olhos,
gatos desamarram
a lua do céu.
De cima do telhado,
gatos mastigam
estrelas
que cintilam sonhos.
in Gatos, Ed. Penalux
CORPO E AMOR
Para te desvestir
arrumo a cama
o camarim
as fantasias
os delírios
as miragens
arrumo rosas
e tulipas
e a ondulação
da areia no deserto
transformo
o deserto em jardim
Para te desvestir
e te vestir de mim
arrumo os espelhos
Seu corpo
me dá notícias
de mim
quando me perco
sua pele me lembra
quem sou
quem já fui
um dia
Seu corpo
tão docemente
atlas
mapa
farol
concha
e ninho
me adivinha
Onde no corpo
a nascente
das lágrimas?
Como um bailarino
que dançasse sobre
o fio de linha
do horizonte
assim o corpo
se equilibra
entre
uma emoção e outra
CESTA DE COSTURA
Dentro da cesta
de costura
da mãe e da tia,
agulhas e
fios de linha
colorida,
botões, rendinhas,
dedal.
A boneca pede
e a menina obedece:
Quero
um vestido novo,
com manga
e bainha.
A mãe ajuda,
corta o pano,
costura.
E lá vai a menina
feito fada madrinha
da boneca de roupa nova.
PRETO, BRANCO E OUTRAS CORES.
Uma galinha rainha caminha
pelo mundo
carregando seus tesouros:
Borboletas, onça, jacaré.
Todos juntos fazem música.
A menina carrega
casa e boneca,
não sabe se anda,
se pula ou se dança.
Por pouco não escorrega.
Lá vai a menina
num bicho-barco,
pendurada
em seus sonhos.
As estrelas espiam.
NAS ENTRELINHAS
Mãos e linhas
tecem o bordado,
enquanto a memória
derrama as cores
sobre o bastidor.
Entre um ponto
e outro,
entre um nó
e seu avesso,
o olhar caminha
para trás e refaz
o que foi vivido,
sonhado, sentido
e nunca se gasta.
SANGUE NÔMADE
O sangue é nômade.
É o que está escrito
nas veias.
Grãos de areia, escombros,
tantas ruínas
e um trânsito intenso
sobre pontes
que atravessam continentes.
Nas bagagens,
pesadas pelo tempo,
as histórias se acumulam
entre as roupas.
O sangue é nômade,
e o ruído de passos
marca a linha que divide
o real e o devaneio.
PARA CABER NO CORPO
Quando a alma é livre
e nômade
e só descansa
em movimento, debruçada
no parapeito do mundo,
quando mergulha
nos abismos
mais profundos,
se estilhaça e voa
e volta,
quando a alma
se reconhece nas nuvens
e nas pedras, nas miragens
do deserto,
e não teme
as encruzilhadas,
então a alma
cabe no corpo.
NAS PAREDES
O homem deixou
sua mão na parede
das cavernas
para que tentassemos
decifrar seu coração,
ainda não sabia
que outras mãos
um dia descobririam
mundos,
inventariam máquinas,
abririam as paredes
do céu.
Que nossas mãos
sobre as suas,
nesse interminável,
nesse alfabeto
de genealogias,
não se cansem
de fabricar amor.
UMA PALAVRA MÁGICA
Me diga uma palavra
mágica,
para que antes
de dormir
eu possa dobrar
minha sombra,
acalmar as pedras
dos meus rios,
traçar acalantos
como preces
nos quatro cantos
do quarto.
Me diga uma palavra
apenas,
que contenha
o universo e o mistério
das seivas,
e então poderei
dançar
dentro do sonho.
COLO DE AVÓ
Tem avó que é diferente,
nada de cachorro, gato,
cavalo ou duende.
Galinha de estimação
é o que a avó carrega
feito mapa do tesouro,
para lá e para cá
(parecem duas dançarinas).
e para quem conta
os seus segredos, fala do tempo,
do que vai colher, do que vai plantar.
A galinha concorda: có,
discorda: cócó,
Às vezes dorme, às vezes acorda
e muitas vezes esquece
que a avó não é galinha.
Apesar de tão quentinha,
a avó é gente.
CIRANDA
Ciranda, cirandinha,
vamos todos cirandar,
enquanto ainda dá tempo,
a primeira estrela anuncia:
A noite já vai chegar.
Vamos dar a meia volta
de mãos bem apertadas
e corações entrelaçados,
volta e meia vamos dar.
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou,
o tempo parece de vidro,
há que carregar com cuidado,
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou,
mas amor nunca se acaba,
meia-volta, volta e meia,
outro amor há de chegar.
PULAR CORDA
Se pudesse o menino pularia
corda
com a linha do horizonte,
se deitaria sobre a curvatura
da Terra
para sempre e sempre
saudar o sol,
encheria os bolsos
de terra e girassóis.
Mas chove uma chuva
fina
e o menino vai até a cozinha
fritar ideias
VIDA
Cada criança que nasce
em qualquer lugar do mundo
com sua história que vai ser escrita
luz por luz,
dor por dor,
é minha.
Que sua vida se cumpra:
Sua morte também é a minha.
PROMESSA DO TEMPO
Às vezes presto atenção
no ruído
que os cavalos fazem
ao longo dos séculos,
quando galopam
sem dono e destino.
E me levam, sem dono
e destino,
enquanto limpo
os pequenos fragmentos
de tempo
que ficaram colados
debaixo das unhas.
Talvez esse barulho
de ossos moídos,
espelhos que tilintam,
frascos vazios de perfume
como pães dormidos,
sejam a chave que abre
o moinho secreto
onde despejamos
o que já não nos cabe mais,
os nós
do que não é mais nosso,
o bricabraque cheio
de pertences mofados.
E os pedaços quebrados
de tempo.
Ofereço minhas lágrimas
ao tempo
que me trouxe
em sua enxurrada
até aqui,
com todos os destroços,
palavras e melodias
que atravessaram o oceano,
sons de violinos perdidos
em telhados que Chagall
pintou.
Ofereço meu corpo
ao tempo,
onde as vozes dos antigos
como pinturas rupestres,
deixaram seu eco.
MONTANHA PARA ANDARILHOS
É bom se perder
no escuro
para farejar brilhos
e perfumes.
Há um silêncio envolto
na música da mata,
há um vaivém de bichos
subterrâneos, outros caçam
na superfície da terra.
A árvore no caminho
oferece ao andarilho
o que tem:
a sua existência.
O casario se aninha
no abraço da montanha.
Em cada cozinha
adivinhamos a lenha
acesa,
movimentos lentos,
milenares,
preparam
o primeiro café,
o que inaugura a manhã.
Um perfume de orvalho
ainda flutua no ar.
Entre verdes e azuis,
ocres, amarelos,
um cavalo branco,
e seus pensamentos
que jamais decifraremos,
nos levará em seu olhar?
Nós, os andarilhos,
os passantes,
os que caminham
sonhando.
OLHA O ROLETE DE CANA-CAIANA!
De onde vem
o mel da cana?
Escondido bem
no fundo,
no meio da sua trama,
é a terra que fabrica
esse presente em silêncio.
A doçura se derrama
feito chama
na boca inteira.
Dia de cana
é dia de festa.
MÁQUINA DE COSTURA
A avó tem uma máquina
de costura
que foi da mãe da sua mãe,
da sua avó.
A avó pedala a máquina
e costura rendas na barra
dos vestidos,
costura um sol e uma lua
no bolso das camisas,
costura uma hora na outra,
um carinho no outro.
E o chão fica cheio de fios
e linha colorida
enquanto a avó vai costurando
amor.
PASSARINHOS
A avó é amestradora
de passarinhos.
Ela canta, assovia.
do seu corpo o amor escapa
e enlaça o ar.
Então os passarinhos
voam para seus braços
e ela vira ninho.
HIBISCO
Há flores que se comem
como se fossem frutas,
numa comunhão entre
os olhos, a boca, o jardim.
Hibiscos coloridos, caprichosos,
derramam no prato a sua beleza,
passageira como um relâmpago,
e ao morder um hibisco
nos transformamos em poesia.
ROUPA SUJA SE LAVA EM CASA
Nem teria graça
lavar roupa suja
no meio da rua,
no meio dos carros,
com o sinal aberto
ou fechado.
Mas em alguns lugares
ainda se lava roupa suja
nos rios
e é uma bela cena
para pintar aquarelas.
também se pode lavar
roupa suja
com água da chuva
mas é perigoso:
a roupa pode ficar
com gosto de céu.
A PALAVRA É DE PRATA E O SILÊNCIO É DE OURO
O silêncio é uma caixa
imensa onde cabem
e ressoam
todas as palavras
e há que pescá-las com cuidado.
Existem as redondas
e macias,
palavras vaga-lumes,
que iluminam a boca
de amor e doçura,
e outras com espinhos,
essa é melhor deixar
no fundo da caixa do mundo.
Dentro do silêncio
as palavras iluminadas
nadam
como peixes dourados.
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