Literatura
Veja a poesia ‘A Cristã-Nova’, escrita por
Machado de Assis:
[Imagem: troth]
“PARTE PRIMEIRA
I
OLHOS FITOS no céu,
sentado à porta
O velho pai estava. Um
luar frouxo
Vinha beijar-lhe a
veneranda barba
Alva e longa, que o peito
lhe cobria,
Corno a névoa na encosta
da montanha
Ao destoucar da aurora.
Alta ia a noite,
E silenciosa: a praia era
deserta.
Ouvia-se o bater pausado
e longo
Da sonolenta vaga, -
único e triste
Som que a mudez quebrava
à natureza.
II
Assim talvez nas solidões
sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito
volvera
As desgraças da pátria.
Quão remota
Aquela de seus pais
sagrada terra,
Quão diferente desta em
que há vivido
Os seus dias melhores!
Vago e doce,
Este luar não alumia os
serros
Estéreis, nem as últimas
ruínas,
Nem as ermas planícies,
nem aquele
Morno silêncio da região
que fora
E que a história de todo
amortalhara.
Ó torrentes antigas!
águas santas
De Cedron! Já talvez o
sol que passa,
E vê nascer e vê morrer
as flores,
Todas no leito vos secou,
enquanto
Estas murmuram plácidas e
cheias,
E vão contando às
deleitosas praias
Esperanças futuras. Longo
e longo
O devolver dos séculos
Será, primeiro que a
memória do homem
Teça a mortalha fria
Da região que inda tinge
o albor da aurora.
III
Talvez, talvez no
espírito fechado
Do ancião vagueavam
lentamente
Estas idéias tristes.
Junto à praia
Era a austera mansão,
donde se via
Desenrolarem-se as
serenas vagas
Do nosso golfo azul. Não
a enfeitavam
As galas da opulência,
nem os olhos
Entristecia coo medonho
aspecto
Da miséria; não pródiga
nem surda
A fortuna lhe fora, mas
aquela
Mediania sóbria, que os
desejos
Contenta do filósofo, lhe
havia
Dourado os tectos.
Guanabara ainda
Não era a flor aberta
Da nossa idade; era botão
apenas,
Que rompia do hastil,
nascido à beira
De suas ondas mansas.
Simples e rude,
Ia brotando a juvenil
cidade,
Nestas incultas terras,
que a lembrança
Recordava talvez do
antigo povo,
E o guaú alegre, e as
ríspidas pelejas,
Toda essa vida que
morreu.
IV
Sentada
Aos pés do velho estava a
amada filha,
Bela como a açucena dos
Cantares,
Como a rosa dos campos. A
cabeça
Nos joelhos do pai
reclina a moça,
E deixa resvalar o
pensamento
Rio abaixo das longas
esperanças
E namorados sonhos.
Negros olhos
Por entre os mal fechados
Cílios estende à serra
que recorta
Ao longe o céu. Morena é
a face linda
E levemente pálida. Mais
bela,
Nem mais suave era a
formosa Rute
Ante o rico Booz, do que
essa virgem,
Flor que Israel brotou do
antigo tronco,
Corada ao sol da juvenil
América.
V
Mudos viam correr aquelas
horas
Da noite, os dous: ele
voltando o rosto
Ao passado, ela os olhos
ao futuro.
Cansam-lhe enfim ao
pensamento as asas
De ir voando, através da
espessa treva,
Frouxas as colhe, e desce
ao campo exíguo
Da realidade. A delicada
virgem
Primeiro volve a si; os
lindos dedos
Corre-lhe ao longo da
nevada barba,
E: "Pai amigo, que
pensar vos leva
Tão longe a alma?"
Estremecendo o velho:
"Curiosa! - lhe
disse, - o pensamento
É como as aves passageiras:
voa
A buscar melhor clima. -
Oposto rumo
Ias tu, alma em flor,
aberta apenas,
Tão longe ainda do calor
do sesta,
Tão remota da noite ...
Uma esperança
Te sorria talvez? Talvez,
quem sabe,
Uns namorados olhos que
me roubem,
Que te levem ... Não
cores, filha minha!
Esquecimento, não;
lembrança ao menos
Ficar-te-á do paterno
afeto; e um dia,
Quando eu na terra
descansar meus ossos,
Haverás doce bálsamo no
seio
De afeição juvenil...
Sim; não te acuso;
Ama: é a lei da natureza,
eterna!
Ama: um homem será da
nossa raça..."
VI
Estas palavras tais
ouvindo a moça,
Turbada os olhos descaiu
na terra,
E algum tempo ficou
calada e triste,
Como no azul do céu o
astro da noite,
Se uma nuvem lhe empana a
meio a face.
Súbito a voz e o rosto
alevantando,
Com dissimulação, -
pecado embora,
Mas inocente:
"Olhai, a noite é linda!
O vento encrespa
molemente as ondas,
E o céu é todo azul e
todo estrelas.
Formosa, oh! quão formosa
a terra minha!
Dizei: além desses
compridos serros,
Além daquele mar, à orla
de outros,
Outras como esta
vivem?"
VII
Fresca e pura
Era-lhe a voz, voz d'alma
que sabia
Entrar no coração
paterno. A fronte
Inclina o velho sobre o
rosto amado
De Ângela. - Na cabeça
ósculo santo
Imprime à filha; e
suspirando, os olhos
Melancolicamente ao ar
levanta,
Desce-os e assim murmura:
"Vaso é digno de ti,
lírio dos vales,
Terra solene e bela. A
natureza
Aqui pomposa, compassiva
e grande,
No regaço recebe a alma
que chora
E o coração que túmido
suspira
Contudo, a sombra
pesarosa e errante
Do povo que acabou pranteia
ainda
Ao longo das areias,
Onde o mar bate, ou no
cerrado bosque
Inda povoado das
relíquias suas,
Que o nome de Tupã
confessar podem
No próprio templo
augusto. Última e forte
Consolação é esta do
vencido
Que viu tudo perder-se no
passado,
E único salva do
naufrágio imenso
O seu Deus. Pátria não.
Uma há na terra
Que eu nunca vi... Hoje é
ruína tudo,
E viuvez e morte. Um
tempo, entanto,
Bela e forte ela foi; mas
longe, longe
Os dias vão de fortaleza
e glória
Escoados de todo como as
águas
Que não volvem jamais.
Óleo que a unge,
Finas telas que a vestem,
atavios
De ouro e prata que o
colo e os braços lhe ornam,
E a flor de trigo e mel
de que se nutre,
Sonhos, são sonhos do
profeta. É morta
Jerusalém! Oh! quem lhe
dera os dias
Da passada grandeza,
quando a planta
Da senhora das gentes
sobre o peito
Pousava dos vencidos,
quando o nome
Do que há salvo Israel,
Moisés" -
"Não!, Cristo,
Filho de Deus! Só ele há
salvo os homens!"
Isto dizendo, a delicada
virgem
As mãos postas ergueu.
Uma palavra
Não disse mais; no coração,
entanto,
Murmurava uma prece
silenciosa,
Ardente e viva; como a fé
que a anima
Ou como a luz da lâmpada
A que não faltou óleo.
VIII
Taciturno
Esteve longo tempo o
ancião. Aquela
Alma infeliz nem toda era
de Cristo
Nem toda de Moisés; ouvia
atento
A palavra da Lei, como
nos dias
Do eleito povo; mas a
doce nota
Do Evangelho não raro lhe
batia
No alvoroçado peito,
Soleníssima e pura...
Descambava
No entanto a lua. A noite
era mais linda,
E mais augusta a solidão.
Na alcova
Entra a pálida moça. Da
parede
Um cristo pende; ela os
joelhos dobra,
Os dedos cruza e reza, -
não serena,
Nem alegre também, como
costuma,
Mas a tremer-lhe nos
formosos olhos
Uma lágrima.
IX
A lâmpada acendida
Sobre a mesa do velho, as
largas folhas
Alumia de um livro. O
máximo era
Dos livros todos. A
escolhida lauda
Era a do canto dos
cativos que iam
Pelas ribas do Eufrates,
relembrando
As desgraças da pátria. A
sós, com eles,
Suspira o velho aquele
salmo antigo:
Junto aos rios da terra
amaldiçoada
De Babilônia, um dia nos
sentamos,
Com saudades de Sião
amada.
As harpas nos salgueiros
penduramos,
E ao relembrarmos os
extintos dias
As lágrimas dos olhos
desatamos.
Os que nos davam cruas
agonias
Do cativeiro, ali nos
perguntavam
Pelas nossas antigas
harmonias.
E dizíamos nós aos que
falavam:
"Como em terra de
exílio amargo e duro
Cantar os hinos que ao
Senhor louvavam?"
Jerusalém, se inda num
sol futuro,
Eu desviar de ti meu
pensamento
E teu nome entregar a
olvido escuro,
A minha destra a frio
esquecimento
Votada seja; apegue-se à
garganta
Esta língua infiel, se um
só momento
Me não lembrar de ti, se
a grande e santa
Jerusalém não for minha
alegria
Melhor no meio de miséria
tanta.
Oh! lembra-lhes, Senhor,
aquele dia
Da abatida Sião,
lembra-lho aos duros
Filhos de Edom, e à voz
que ali dizia:
Arruinai-a, arruinai-a;
os muros
Arrasemo-los todos; só
lhe baste
Um montão de destroços
mal seguros.
Filha de Babilônia, que
pecaste,
Abençoado o que se houver
contigo
Com a mesma opressão que
nos mostraste!
Abençoado o bárbaro
inimigo
Que os tenros filhos teus
às mãos tomando,
Os for, por teu
justíssimo castigo,
Contra um duro penedo
esmigalhando!
PARTE SEGUNDA
I
Era naquela doce e amável
hora
Em que vem branqueando a
alva celeste,
Quando parece que remoça
a vida
E toda se espreguiça a
natureza.
Alva neblina que
espalhara a noite
Frouxamente nos ares se
dissolve,
Como de uns olhos tristes
Foge coo tempo a já
ligeira sombra
De consoladas mágoas.
Vida é tudo,
E pompa e graça natural
da terra,
Mas que não seja no ermo,
Onde seus olhos rútilos
espraia
Livres a aurora sem tocar
vestígios
De obras caducas do
homem, onde as águas
Do rio bebe a fugitiva
corça,
Vivo aroma nos ares se
difunde,
E aves, e aves de
infinitas cores
Voando vão e revoando
tornam,
Inda senhoras da amplidão
que é sua.
Donde as há de fugir o
homem um dia
Quando a agreste solidão
entrar o passo
Criador que derruba. Já
de todo
Nado era o sol; e à viva
luz que inunda
Estes meus pátrios morros
e estas praias,
Sorrindo a terra moça
Noiva parece que o
virgíneo seio
Entrega ao beijo nupcial
do amado.
E há de os fúnebres véus
lançar a morte
Na verdura do campo? A
natureza
A nota vibrará da extrema
angústia
Neste festivo cântico de
graças
Ao sol que nasce, ao
Criador que o envia,
Como renovação de
juventude?
II
Coava o sol pela miúda e
fina
Gelosia da alcova em que
se apresta
A recente cristã.
Singelas roupas
Traja da ingênua cor que
a natureza
Pintou nas plumas que
primeiro brota
O seu pátrio guará.
Vínculo frouxo
Mal lhe segura a luzidia
trança,
Como ao desdém lançada
Sobre a espádua gentil.
Jóia nenhuma,
Mais que seus olhos
meigos, e essa doce
Modéstia natural,
encanto, enlevo,
Casta flor que aborrece
os mimos do horto,
E uma livre nascer no
campo, à larga,
Rústica, mas formosa. Não
lhe ensombram
As tristezas da véspera o
semblante,
Nem da secreta lágrima na
face
Ficou vestígio, -
Descuidosa e alegre,
Ri-se, murmura uma
cantiga, ou pensa,
E repete baixinho um
nome... Oh! se ele
Espreitá-la pudesse ali
risonha,
A sós consigo, entre o
seu Cristo e as flores
Colhidas ao tombar da extinta
noite,
E vicejantes inda!
III
De repente,
Aos ouvidos da moça
enamorada
Chega um surdo rumor de
soltas vozes,
Que ora crescendo vai,
ora se apaga,
Estranho, desusado.
Eram... São eles,
Os franceses, que vêm de
longes praias
A cobiçar a pérola mimosa,
Niterói, na alva-azul
concha nascida
De suas águas recatadas.
Rege
O atrevido Duclerc a flor
dos nobres,
Cuja tez branca
requeimara o fogo
Que o vivo sol dos
trópicos dardeja,
E a lufada dos ventos do
oceano.
Cobiçam-te eles, minha
terra amada,
Como quando nas faixas
sempre-verdes
Eras envolta; e rude,
inda que belo,
O aspecto havias que
poliu mais tarde
A clara mão do tempo.
Inda repetem
Os ecos do recôncavo os
suspiros
Dos que vieram a buscar a
morte,
E a receberam dos varões
possantes
Companheiros de Estácio.
A todos eles,
Prole de Luso ou geração
da Gália,
Cativara-os a náiade
escondida,
E o sol os viu travados
nessa longa
E sangrenta porfia, cujo
prêmio
Era teu verde, cândido
regaço.
Triunfara o trabuco
lusitano
Naquele extinto século.
Vencido,
O pavilhão francês
volvera à pátria,
Pela água arrastando o
longo crepe
De suas tristes, mortas
esperanças.
Que vento novo o
desfraldou nos ares?
IV
Ângela ouvira as vozes da
cidade,
As vozes do furor. Já
receosa,
Trêmula, foge à alcova e
se encaminha
À câmera paterna. Ia
transpondo
A franqueada porta... e
pára. O peito
Rompe-lhe quase o
coração, - tamanho
É o palpitar, um palpitar
de gosto,
De surpresa e de susto.
Aqueles olhos,
Aquela graça máscula do
gesto,
Graça e olhos são dele, o
amado noivo,
Que entre os mais homens
elegeu sua alma
Para o vínculo eterno...
Sim, que a morte
Pode arrancar ao seio
humano o alento
Último e derradeiro; os
que deveras
Unidos foram, volverão
unidos
A mergulhar na
eternidade. Estava
Junto do velho pai o
gentil moço,
Ele todo agitado, o
ancião sombrio,
Calados ambos. A atitude
de ambos,
O misterioso, gélido
silêncio,
Mais que tudo, a presença
nunca usada
Daquele homem ali, que
mal a espreita
De longe e a furto, nos
instantes breves
Em que lhe é dado vê-la,
tudo à moça
O ânimo abala e o coração
enfia.
V
Mas o tropel de fora
avulta e cresce
E os três acorda. A
virgem, lentamente,
Rosto inclinado ao chão,
transpõe o espaço
Que dos dous a separa...
O tenro colo
Curva ante o pai, e na
enrugada destra
O ósculo imprime, herdada
usança antiga
De filial respeito. As
mãos lhe toma
Enternecido o velho;
olhos com olhos
Alguns instantes rápidos
ficaram,
Até que ele, voltando o
rosto no moço:
"Perdoai, - disse, -
se o paterno afeto
Me atou a língua. Vacilar
é justo
Quando à pobre ruína a
flor lhe pedem
Que única lhe nasceu, -
única adorna
A aridez melancólica do
extremo,
Pálido sol... Não
protesteis! Roubá-la,
Arrancá-la aos meus
últimos instantes,
Não o fareis decerto.
Pouco importa
Dês que a metade lhe
levais da vida,
Dês que seu coração convosco
parte
Afeições minhas. - Ao
demais, o sangue
Que lhe corre nas veias,
condenado,
Nuno, será dos
vossos..." Longo e frio
Olhar estas palavras
acompanha,
Como a arrancar-lhe o
pensamento interno.
A donzela estremece. Nuno
o alento
Recobra e fala: "Puro
sangue é ele,
Se lhe corre nas veias.
Tão mimosa,
Cândida criatura, alma
tão casta,
Inda nascida entre os
incréus da Arábia,
Deus a votara à conversão
e à vida
Dos eleitos do céu. Águas
sagradas
Que a lavaram no berço,
já nas veias
O sangue velho e impuro
lhe trocaram
Pelo sangue de
Cristo..."
VI
Neste instante
Cresce o tumulto
exterior. A virgem
Medrosa toda se conchega
ao colo
Do velho pai.
"Ouvis? Falai! é tempo!"
Nuno prossegue.
"Este comum perigo
Chama os varões à ríspida
batalha;
Com eles vou. Se um
galardão, entanto,
Merecer de meus feitos,
não à pátria
Irei pedi-lo; só de vós o
espero,
Não o melhor, mas o único
na terra,
Que a minha vida...
" Rematar não pôde
Esta palavra. Ao
escutar-lhe a nova
Da iminente peleja
E a decisão de combater
por ela,
Inteiras sente as forças
que se perdem
A donzela, e bem como ao
rijo vento
Inclina o colo o arbusto
Nos braços desmaiou do
pai. Volvida
A si, na palidez do rosto
o velho
Atenta um pouco, e
suspirando: "As armas
Empunhai; combatei;
Ângela é vossa.
Não de mim a havereis;
ela a si mesma
Toda nas vossas mãos se
entrega. Morta
Ou feliz é a escolha; não
vacilo:
Seja feliz, e folgarei
com ela..."
VII
Sobre a fronte dos dous
as mãos impondo
Ao seio os conchegou, bem
como a tenda
Do patriarca santo
agasalhava
O moço Isaac e a delicada
virgem
Que entre os rios nasceu.
Delicioso
E solene era o quadro;
mas solene
E delicioso embora, ia
esvair-se
Qual celeste visão, que
acende a espaços
O ânimo do infeliz. A
guerra, a dura
Necessidade de imolar os
homens,
Por salvar homens, a
terrível guerra
Corta o amoroso vínculo
que os prende
E à moça o riso lhe
converte em lágrimas.
Mísera és tu, pálida
flor; mas sofre
Que o calor deste sol te
acurve o cálix,
Morta, não, nem já murcha
- mas apenas
Como cansada de queimor
do estio.
Sofre; a tarde virá
serena e branda
A reviver-te o alento; a
fresca noite
Choverá sobre ti piedoso
orvalho
E mais risonha surgirás à
aurora.
VIII
Foge à estância da paz o
ardido moço;
Esperança, fortuna, amor
e pátria
A guerrear o levam. Já
nas veias
O vivo sangue irrequieto
pulsa,
Como ansioso de correr
por ambas,
A bela terra e a
suspirada noiva.
Triste quadro a seus
olhos se apresenta;
Nos femininos rostos vê
pintados
Incerteza e terror;
lamentos, gritos
Soam de entorno. Voam
pelas ruas
Homens de guerra, homens
de paz se aprestam
Para a crua peleja; e, ou
nobre estância,
Ou choupana rasteira,
armado é tudo
Contra, a forte invasão.
Nem lá se deixa
Quieto, a sós com Deus,
na estreita cela,
O solitário monge que às
batalhas
Fugiu da vida. O
patrimônio santo
Cumpre salvá-lo. Cruz e
espada empunha,
Deixa a serena região da
prece
E voa ao torvelinho do
combate.
IX
Entre os fortes alunos
que dirige
O ardido Bento, a
perfilar-se corre
Nuno. Estes são os que o
primeiro golpe
Descarregam no atônito
inimigo.
Do militar ofício ignoram
tudo,
De armas não sabem; mas o
brio e a honra
E a lembrança da terra em
que primeiro
Viram a luz, e onde o
perdê-la é doce,
Essa a escola lhes foi.
Pasma o inimigo
Do nobre esforço e
galhardia rara,
Com que inda nos umbrais
da vida que orna
Tanta esperança, tanto
sonho de ouro,
Resolutos a morte
encaram, prestes
A retalhar nas dobras
Da vestidura fúnebre da
pátria
O piedoso lençol que os
leve à campa,
Ou com ela cingir o
eterno louro.
X
Ó mocidade, ó baluarte
vivo
Da cara pátria! Já
perdida é ela,
Quando em teu peito
entusiasmo santo
E puro amor se extingue,
e àquele nobre,
Generoso despejo e ardor
antigo
Sucede o frio calcular, e
o torpe
Egoísmo, e quanto há hino
humano peito,
Que é fruto nosso e
podre... Muitos caem
Mortos ali. Que importa?
Vão seguindo
Avante os bravos, que a
invasão caminha
Implacável e dura, como a
morte,
A pelejar e a destruir.
Tingidas
Ruas de estranho sangue
E sangue nosso, lacerados
membros,
Corpos de que há fugido a
alma cansada,
E o denso fumo e os fúnebres
lamentos,
Quem nessa confusão,
miséria e glória
Conhecerá da juvenil
cidade
O aspecto, a vida? Aqui
da infância os dias
Nuno vivera, à vicejante
sombra
Do seu pátrio arvoredo,
ao som das vagas
Que inda batendo vão na
amada areia;
Risos, jogos da verde
meninice,
Esta praia lhe lembra,
aquela pedra,
A mangueira do campo, a
tosca cerca
De espinheiro e de flores
enlaçadas,
A ave que voa, a brisa
que suspira,
Que suspira como ele há
suspirado,
Quando rompendo o coração
do peito
Ia-lhe empós dessa visão
divina,
Realidade agora ... E há
de perdê-las
Pátria e noiva? Esta
idéia lhe esvoaça
Torva e surda no cérebro
do moço,
E ao contraído espírito
redobra
Ímpeto e forças. Rompe
Por entre a multidão dos
seus, e investe
Contra o duro inimigo; as
balas voam,
E com elas a morte, que
não sabe
Dos escolhidos seus a
terra e o sangue,
E indistintos os toma;
ele, no meio
Daquele horrível
turbilhão, parece
Que a faísca do gênio o
leva e anima,
Que a fortuna o votara à
glória.
XI
Soam
Enfim os gritos de
triunfo; e o peito
Do povo que lutou respira
à larga,
Como ao que, após árdua
subida, chega
Ao cimo da montanha, e ao
longe os olhos
Estende pelo azul dos
céus, e a vida
Bebe nesse ar mais puro.
Farto sangue
A vitória custara; mas,
se em meio
De tanta glória há lágrimas,
soluços,
Gemidos de viuvez, quem
os escuta,
Quem as vê essas lágrimas
choradas
Na multidão da praça que
troveja
E folga e ri? O sacro
bronze que usa
Os fiéis convidar à
prece, e a morte
Do homem pranteia lúgubre
e solene,
Ora festivo canta
O comum regozijo; e pela
aberta
Porta dos templos entra a
frouxo o povo
A agradecer com lágrimas
e vozes
O triunfo, - piedoso
instinto da alma,
Que a Deus levanta o
pensamento e as graças.
XII
Tu, mancebo feliz, tu
bravo e amado,
Vou nas asas rútilas e
leves
Da fortuna e do amor.
Como ao indiano,
Que, ao regressar das
porfiadas lutas,
Por estas mesmas regiões
entrava,
A encontrá-lo saía a
meiga esposa,
- A recente cristã, entre
assustada
E jubilosa coroará teus
feitos
Coa melhor das capelas
que hão pousado
Em frente de varão, - um
doce e longo
Olhar que inteiro encerra
a alma que chora
De gosto e vida! Voa o
moço à estância
Do ancião; e ao pôr na
suspirada porta
Olhos que traz famintos
de encontrá-la,
Frio terror lhe empece os
membros. Frouxo
Ia o sol transmontando;
lenta a vaga
Melancolicamente ali
gemia,
E todo o ar parecia arfar
de morte
Qual se pálida a vira, já
cerrados
Os desmaiados olhos,
Frios os doces lábios
Cansados de pedir aos
céus por ele.
Nuno estacara; e pelo
rosto em fio
O suor lhe caiu da
extrema angústia;
Longo tempo vacila;
Vence-se enfim, e entra a
mansão da esposa.
XIII
Quatro vultos na câmera
paterna
Eram. O pai sentado,
Calado e triste.
Reclinada a fronte
No espaldar da cadeira, a
filha os olhos
E o rosto esconde, mas
tremor contínuo
De um abafado soluçar o
esbelto
Corpo lhe agita. Nuno aos
dous se chega;
Ia a falar, quando a
formosa virgem,
Os lacrimosos olhos
levantando,
Um grito solta do íntimo
do peito
E se lhe prostra aos pés:
"Oh! vivo, és vivo!
Inda bem... Mas o céu o
céu, que por nós vela,
Aqui te envia... Salva-o
tu, se podes,
Salva meu pobre
pai!" Estremecendo,
Nela e no velho fita Nuno
os olhos,
E agitado pergunta:
"Qual ousado
Braço lhe ameaça a
vida?" Cavernosa
Uma voz lhe responde:
"O santo ofício!"
Volve o mancebo o rosto
E o merencório aspecto
De dous familiares todo o
sangue
Nas veias lhe gelou.
XIV
Solene o velho
Com voz, não frouxa, mas
pausada, fala:
"Vês? todo o brio,
todo o amor no peito
Te emudeceu. Só
lastimar-me podes,
Salvar-me, nunca. O
cárcere me aguarda,
E a fogueira talvez;
cumpri-la, é tempo,
A vontade de Deus. Tu,
pai e esposo
Da desvalida filha que aí
deixo,
Nuno, serás. A relembrar
com ela
Meu pobre nome,
aplacareis a imensa
Cólera do Senhor..."
Sorrindo irônico,
Estas palavras últimas
lhe caem
Dos lábios tristes.
Ergue-se: "Partamos!
Adeus! Negou-me Aquele
que no campo
Deixa a árvore anciã
perder as folhas
No mesmo ponto em que as
nutriu viçosas,
Negou-me ver por estas
longas serras
Ir-se-me o último sol.
Brando regaço
A filial piedade me daria
Em que eu dormisse o
derradeiro sono,
E em braços de meu sangue
transportado
Fora em horas de paz e de
silêncio
Levado ao leito extremo e
eterno. Vive
Ao menos tu... "
XV
Um familiar lhe corta
O adeus último:
"Vamos: é já tempo!"
Resignado o infeliz, ao
seio aperta
A filha, e todo o coração
num beijo
Lhe transmitiu, e a
caminhar começa.
Ângela os lindos braços
sobre os ombros
Trava do austero pai;
flores disséreis
De parasita, que enroscou
seus ramos
Pelo cansado tronco,
estéril, seco
De árvore antiga:
"Nunca! Hão de primeiro
A alma arrancar-me! Ou se
heis pecado, e a morte
Pena há de ser da
cometida culpa,
Convosco descerei à campa
fria,
Juntos a mergulhar na
eternidade.
Israel tem vertido
Um mar de sangue. Embora!
à tona dele
Verdeja a nossa fé, a fé
que anima
O eleito povo, flor suave
e bela
Que
o medo não desfolha, nem já seca.”
□
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