Literatura
Veja o segundo trecho do conto ‘A
Cartomante’, do grandioso Joaquim Maria Machado de Assis. Para ler toda a
sequência, clique no marcador A Cartomante – Machado de Assis.
“Como daí chegaram ao amor, não o soube
ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua
enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor
di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em
si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo
ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe
ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os
olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam
antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia,
fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita
apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde
ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras
vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha
caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos
ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o
cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não
pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe
estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado
e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a
batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o
sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,
pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que
algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de
Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta
anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de
todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as
visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o
motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências
prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e
medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do
procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que
o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas.
Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não
podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a
opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este
pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado;
temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem
remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos
para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual,
guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo
Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita
deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é
que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe
ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer
depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia
acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se
corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição,
recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso
falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua,
advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa?
Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão,
afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso
falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de
um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e
escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo.
Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso
repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a
casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou
nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe
cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria
pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A
mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto
fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não
relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou
então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria
voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem
demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e
ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção
crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a
crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando
que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do
Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a
trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele;
não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo veio
agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o
perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua
estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o
obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda,
ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez,
e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas
fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente
da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.”
>> Segue...
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