“E ela, não deixando ele contar o que fora
o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia
sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a
aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios
marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe
não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando
dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os
afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a
casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura,
diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça,
alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever
cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso
decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a
violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente;
seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a
casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto
revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para
se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então
em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o
tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo
fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora,
teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por
agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e
deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim
se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela
pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos.
Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua
porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de
sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele
interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse
pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver
junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela
adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu
profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não
significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e
muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter
resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara
ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que
deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio
da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o
sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa
confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se
havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros
dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a
mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera
senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de
capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção
misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter
composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo
o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde
o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das
palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de
recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua
voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem
ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança.
Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao
retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu
gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e,
para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a
casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra
no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele
recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela
lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez
que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se
que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher
para adotar afinal o seu universo.” □
PIÑON, Nélida.
(In:
Sala de Armas. Rio de Janeiro: Record, 1997. Página 263)
2 Comentários
brigadíssimo
ResponderExcluirDe nada, @Herick Martins Schaiblich!
ResponderExcluirSeu comentário será publicado em breve e sua dúvida ou sugestão vista pelo Mestre Blogueiro. Caso queira comentar usando o Facebook, basta usar a caixa logo abaixo desta. Não aceitamos comentários com links. Muito obrigado!
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