Em uma série especial com três posts,
estaremos publicando novamente o conto ‘Colheita’, de Nélida Piñon. Este conto
fora publicado originalmente no livro ‘Sala de Armas’, no ano de 1973. Nélida é
uma grande escritora brasileira, jornalista, carioca de Vila Isabel, Rio de Janeiro
- RJ. Nasceu em 3 de maio de 1937. Fora eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira
número trinta da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Aurélio Buarque
de Holanda, foi recebida em 3 de maio de 1990, pelo acadêmico Lêdo Ivo, sendo a
primeira mulher a assumir a presidência da Academia Brasileira de Letras.
Às vezes, a distância altera a forma como
vemos a nossa vida e as nossas relações. Veja a primeira parte do conto e, em
posts posteriores, divulgaremos o restante desta estória:
“Um rosto proibido desde que crescera.
Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas
minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A
cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem
encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse
de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva
mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e
seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a
escavações, refazerem cidades submersas em lava.
A
aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois
soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do
cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles
se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também
completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes
que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar,
embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe
andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado
e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava
o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao
contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas
cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do
rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando
o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei,
insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de
potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões
fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis
até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A
delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A
partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem
com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida
de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de
alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais
ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem
representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer
conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela
casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe
presentes, pedaços de toicinho, cestas de pera, e poesias esparsas. Para que
ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível,
sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em
sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o
sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos,
todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que
de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez
dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras
indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida
passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela
consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela
casa.
Jamais faltou uma flor diariamente
renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo,
além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o
penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça —
decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o
retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia:
porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou
você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha
vida.
Durante a noite, confiando nas sombras,
retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a
atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele
habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum
dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o
mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos
de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que
se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era
mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só
com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas,
se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia
temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma
vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas
limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia
aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora
tivesse conhecido a coroa quando das planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso
conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma
determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete
rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo
de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três
vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não
admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu
nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo
o único a cumprir a promessa? “
Segue...
PIÑON, Nélida. □
0 Comentários
Seu comentário será publicado em breve e sua dúvida ou sugestão vista pelo Mestre Blogueiro. Caso queira comentar usando o Facebook, basta usar a caixa logo abaixo desta. Não aceitamos comentários com links. Muito obrigado!
NÃO ESQUEÇA DE SEGUIR O BLOG DO MESTRE NAS REDES SOCIAIS (PELO MENU ≡ OU PELA BARRA LATERAL - OU INFERIOR NO MOBILE) E ACOMPANHE AS NOVIDADES!