Literatura
Veja o terceiro trecho do conto ‘A
Cartomante’, do grandioso Joaquim Maria Machado de Assis. Para ler toda a
sequência, clique no marcador A Cartomante – Machado de Assis.
“Camilo reclinou-se no tílburi, para não
ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas
morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as
superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir
por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para
fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante,
que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu,
reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as
asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,
safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo.
Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido
sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele
via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam
descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou
rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma
porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca
reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia...
" Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta:
disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a
escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas
ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve
idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes
latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher;
era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali
subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em
cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado
dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava
do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa,
e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca
luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um
baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente,
olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de
quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos.
Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz
aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto
afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe
acontecerá alguma cousa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que
esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos
finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três
vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as
palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria
nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era
indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que
os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou,
recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao
espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da
cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe
na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e
levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com
passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando
duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a
mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como
pagasse; ignorava o preço.”
>> Segue...
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