Morte e vida Severina (X)


cliptomania

CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS 

— O dia hoje está difícil
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos). 

— pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra. 

— é que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém. 

— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não para o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem. 

— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangunlezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros)
bairro também dos industriais,
dos membros das
associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída. 
 
— Só pedi que me mandasse
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra. 

— Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se libertaram jamais.

— Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas. 

— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa
onde se exige quepe
e farda engomada e limpa. 

— Mas não foi pelas gorjetas, não,
que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia. 

— E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido? 

— Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido. 

— E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste? 

— No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde. 

— E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe? 

— Passo para o dos industriários,
que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários. 

— Passas para o dos operários,
deixas o dos pobres vários
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos. 

— é, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.

— é a gente sem instituto,
gente de braços devolutos
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto. 

— é a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos. 

— é a gente retirante
que vem do Sertão de longe. 

— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante. 

— E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar. 

— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar. 

— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar. 

— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar. 

— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca. 

— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte. 

— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal. 

— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição. 

— Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia
morre gente que nem vivia.

— E esse povo de lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitério esperando. 

— Não é viagem o que fazem
vindo por essas caatingas, vargens
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.
 

Postar um comentário

0 Comentários