cliptomania
CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE
PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A
CONVERSA DE DOIS COVEIROS
—
O dia hoje está difícil
não
sei onde vamos parar.
Deviam
dar um aumento,
ao
menos aos deste setor de cá.
As
avenidas do centro são melhores,
mas
são para os protegidos:
há
sempre menos trabalho
e
gorjetas pelo serviço
e
é mais numeroso o pessoal
(toma
mais tempo enterrar os ricos).
—
pois eu me daria por contente
se
me mandassem para cá.
Se
trabalhasses no de Casa Amarela
não
estarias a reclamar.
De
trabalhar no de Santo Amaro
deve
alegrar-se o colega
porque
parece que a gente
que
se enterra no de Casa Amarela
está
decidida a mudar-se
toda
para debaixo da terra.
—
é que o colega ainda não viu
o
movimento: não é o que se vê.
Fique-se
por aí um momento
e
não tardarão a aparecer
os
defuntos que ainda hoje
vão
chegar (ou partir, não sei).
As
avenidas do centro,
onde
se enterram os ricos,
são
como o porto do mar
não
é muito ali o serviço:
no
máximo um transatlântico
chega
ali cada dia,
com
muita pompa, protocolo,
e
ainda mais cenografia.
Mas
este setor de cá
é
como a estação dos trens:
diversas
vezes por dia
chega
o comboio de alguém.
—
Mas se teu setor é comparado
à
estação central dos trens,
o
que dizer de Casa Amarela
onde
não para o vaivém?
Pode
ser uma estação
mas
não estação de trem:
será
parada de ônibus,
com
filas de mais de cem.
—
Então por que não pedes,
já
que és de carreira, e antigo,
que
te mandem para Santo Amaro
se
achas mais leve o serviço?
Não
creio que te mandassem
para
as belas avenidas
onde
estão os endereços
e
o bairro da gente fina:
isto
é, para o bairro dos usineiros,
dos
políticos, dos banqueiros,
e
no tempo antigo, dos bangunlezeiros
(hoje
estes se enterram em carneiros)
bairro
também dos industriais,
dos
membros das
associações
patronais
e
dos que foram mais horizontais
nas
profissões liberais.
Difícil
é que consigas
aquele
bairro, logo de saída.
—
Só pedi que me mandasse
para
as urbanizações discretas,
com
seus quarteirões apertados,
com
suas cômodas de pedra.
—
Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive
extranumerários,
contratados
e mensalistas
(menos
os tarefeiros e diaristas).
Para
lá vão os jornalistas,
os
escritores, os artistas
ali
vão também os bancários,
as
altas patentes dos comerciários,
os
lojistas, os boticários,
os
localizados aeroviários
e
os de profissões liberais
que
não se libertaram jamais.
—
Também um bairro dessa gente
temos
no de Casa Amarela:
cada
um em seu escaninho,
cada
um em sua gaveta,
com
o nome aberto na lousa
quase
sempre em letras pretas.
Raras
as letras douradas,
raras
também as gorjetas.
—
Gorjetas aqui, também,
só
dá mesmo a gente rica,
em
cujo bairro não se pode
trabalhar
em mangas de camisa
onde
se exige quepe
e
farda engomada e limpa.
—
Mas não foi pelas gorjetas, não,
que
vim pedir remoção:
é
porque tem menos trabalho
que
quero vir para Santo Amaro
aqui
ao menos há mais gente
para
atender a freguesia,
para
botar a caixa cheia
dentro
da caixa vazia.
—
E que disse o Administrador,
se
é que te deu ouvido?
—
Que quando apareça a ocasião
atenderá
meu pedido.
—
E do senhor Administrador
isso
foi tudo que arrancaste?
—
No de Casa Amarela me deixou
mas
me mudou de arrabalde.
—
E onde vais trabalhar agora,
qual
o subúrbio que te cabe?
—
Passo para o dos industriários,
que
também é o dos ferroviários,
de
todos os rodoviários
e
praças-de-pré dos comerciários.
—
Passas para o dos operários,
deixas
o dos pobres vários
melhor:
não são tão contagiosos
e
são muito menos numerosos.
—
é, deixo o subúrbio dos indigentes
onde
se enterra toda essa gente
que
o rio afoga na preamar
e
sufoca na baixa-mar.
—
é a gente sem instituto,
gente
de braços devolutos
são
os que jamais usam luto
e
se enterram sem salvo-conduto.
—
é a gente dos enterros gratuitos
e
dos defuntos ininterruptos.
—
é a gente retirante
que
vem do Sertão de longe.
—
Desenrolam todo o barbante
e
chegam aqui na jante.
—
E que então, ao chegar,
não
tem mais o que esperar.
—
Não podem continuar
pois
têm pela frente o mar.
—
Não têm onde trabalhar
e
muito menos onde morar.
—
E da maneira em que está
não
vão ter onde se enterrar.
—
Eu também, antigamente,
fui
do subúrbio dos indigentes,
e
uma coisa notei
que
jamais entenderei:
essa
gente do Sertão
que
desce para o litoral, sem razão,
fica
vivendo no meio da lama,
comendo
os siris que apanha
pois
bem: quando sua morte chega,
temos
que enterrá-los em terra seca.
—
Na verdade, seria mais rápido
e
também muito mais barato
que
os sacudissem de qualquer ponte
dentro
do rio e da morte.
—
O rio daria a mortalha
e
até um macio caixão de água
e
também o acompanhamento
que
levaria com passo lento
o
defunto ao enterro final
a
ser feito no mar de sal.
—
E não precisava dinheiro,
e
não precisava coveiro,
e
não precisava oração
e
não precisava inscrição.
—
Mas o que se vê não é isso:
é
sempre nosso serviço
crescendo
mais cada dia
morre
gente que nem vivia.
—
E esse povo de lá de riba
de
Pernambuco, da Paraíba,
que
vem buscar no Recife
poder
morrer de velhice,
encontra
só, aqui chegando
cemitério
esperando.
—
Não é viagem o que fazem
vindo
por essas caatingas, vargens
aí
está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.
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