cliptomania
ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO
NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU
QUE MATEI NÃO!"
—
A quem estais carregando,
irmãos
das almas,
embrulhado
nessa rede?
dizei
que eu saiba.
—
A um defunto de nada,
irmão
das almas,
que
há muitas horas viaja
à
sua morada.
—
E sabeis quem era ele,
irmãos
das almas,
sabeis
como ele se chama
ou
se chamava?
—
Severino Lavrador,
irmão
das almas,
Severino
Lavrador,
mas
já não lavra.
—
E de onde que o estais trazendo,
irmãos
das almas,
onde
foi que começou
vossa
jornada?
—
Onde a caatinga é mais seca,
irmão
das almas,
onde
uma terra que não dá
nem
planta brava.
—
E foi morrida essa morte,
irmãos
das almas,
essa
foi morte morrida
ou
foi matada?
—
Até que não foi morrida,
irmão
das almas,
esta
foi morte matada,
numa
emboscada.
—
E o que guardava a emboscada,
irmão
das almas
e
com que foi que o mataram,
com
faca ou bala?
—
Este foi morto de bala,
irmão
das almas,
mas
garantido é de bala,
mais
longe vara.
—
E quem foi que o emboscou,
irmãos
das almas,
quem
contra ele soltou
essa
ave-bala?
—
Ali é difícil dizer,
irmão
das almas,
sempre
há uma bala voando
desocupada.
—
E o que havia ele feito
irmãos
das almas,
e
o que havia ele feito
contra
a tal pássara?
—
Ter um hectares de terra,
irmão
das almas,
de
pedra e areia lavada
que
cultivava.
—
Mas que roças que ele tinha,
irmãos
das almas
que
podia ele plantar
na
pedra avara?
—
Nos magros lábios de areia,
irmão
das almas,
os
intervalos das pedras,
plantava
palha.
—
E era grande sua lavoura,
irmãos
das almas,
lavoura
de muitas covas,
tão
cobiçada?
—
Tinha somente dez quadras,
irmão
das almas,
todas
nos ombros da serra,
nenhuma
várzea.
—
Mas então por que o mataram,
irmãos
das almas,
mas
então por que o mataram
com
espingarda?
—
Queria mais espalhar-se,
irmão
das almas,
queria
voar mais livre
essa
ave-bala.
—
E agora o que passará,
irmãos
das almas,
o
que é que acontecerá
contra
a espingarda?
—
Mais campo tem para soltar,
irmão
das almas,
tem
mais onde fazer voar
as
filhas-bala.
—
E onde o levais a enterrar,
irmãos
das almas,
com
a semente do chumbo
que
tem guardada?
—
Ao cemitério de Torres,
irmão
das almas,
que
hoje se diz Toritama,
de
madrugada.
—
E poderei ajudar,
irmãos
das almas?
vou
passar por Toritama,
é
minha estrada.
—
Bem que poderá ajudar,
irmão
das almas,
é
irmão das almas quem ouve
nossa
chamada.
—
E um de nós pode voltar,
irmão
das almas,
pode
voltar daqui mesmo
para
sua casa.
—
Vou eu que a viagem é longa,
irmãos
das almas,
é
muito longa a viagem
e
a serra é alta.
—
Mais sorte tem o defunto
irmãos
das almas,
pois
já não fará na volta
a
caminhada.
—
Toritama não cai longe,
irmãos
das almas,
seremos
no campo santo
de
madrugada.
—
Partamos enquanto é noite
irmãos
das almas,
que
é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.
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