“Ela sabia agora que era ele. Não
consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e
fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não
restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem
preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que
seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o
silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E
ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não
perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original
as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios
limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher,
assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o
enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter
dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as
palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria
seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o
tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não
procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe
os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato
pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em
achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras.
Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se
trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama,
entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase
lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas,
agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as
mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como
que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem
querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria
estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre
o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder
seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela
o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que
queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém
ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida,
se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama
recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre
fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse
chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam
preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele
disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o
mundo, a terra, sabe, e além do mais...
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não
consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a
ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de
algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque
você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim
que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não
ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não
deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro,
mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão
de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali
jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser
senão atingindo diariamente a expiação. “
Segue...
PIÑON, Nélida. □
0 Comentários
Seu comentário será publicado em breve e sua dúvida ou sugestão vista pelo Mestre Blogueiro. Caso queira comentar usando o Facebook, basta usar a caixa logo abaixo desta. Não aceitamos comentários com links. Muito obrigado!
NÃO ESQUEÇA DE SEGUIR O BLOG DO MESTRE NAS REDES SOCIAIS (PELO MENU ≡ OU PELA BARRA LATERAL - OU INFERIOR NO MOBILE) E ACOMPANHE AS NOVIDADES!